quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A explosão que não vem mais

Alice me ligou. Estava furiosa. Não atendi, mas sei que estava. Não fiz o que combinamos, e não por que esqueci ou porque quis fazer algo melhor. Não fiz porque não quis, simples assim. Não quis ouvir sua voz descontrolada e suas expressões de raiva e reprovação. E também não quis atender e ouvir um descontrole agora acumulado. Já conhecia todo o discurso, e agora era pior. Ela sabia que eu não ia atender e que não me incomodaria nem um pouco com o telefone tocando o dia todo, e eu também sabia que ela não ficaria só nisso.
Eram umas 5 da tarde ainda, mas o sol já havia sumido há tempos por causa do tempo feio que havia se formado. O mundo caía lá fora e a minha vida caía junto, e eu permanecia jogado no sofá sem fazer nada. Não queria pensar, não queria agir. Não queria nem fugir, só queria evitar que tudo fosse pelos ares de vez. Mas agora não teria como. E isso era uma grande merda.
A campainha tocou. Ela tinha a chave, mas mesmo assim tocou a campainha. Ela queria me forçar a encarar a situação. Não bastava entrar e vomitar tudo pra um corpo sem ação, como se fosse uma mãe nervosa que é ignorada até que a raiva passe. A raiva já tinha passado, e o que vinha agora era pior que isso.
Estava ouvindo um CD gravado por ela. Eram suas músicas favoritas de bandas que os dois ouviam, e naquele momento tocava Baba O'Riley do Who. Levantei e fui andando descalço até a porta com um copo de Jack na mão. Apenas abri a porta e dei a volta sem chegar a olhar pro seu rosto.
- Eu não aguento mais isso. - disse ela em voz calma e séria.
Continuei como se não tivesse ouvido nada. Enchi o copo e coloquei mais gelo, e sentei no sofá. Fiquei um pouco inclinado, com o copo entre as pernas e os olhos fechados, viajando com o solo de violino da música.
Acho que a cada segundo eu fazia algo que deixava Alice mais furiosa. Ela devia estar engasgada com tanta coisa pra falar, e eu não dava nem brecha pra ela começar. Eu ficaria bem puto se fosse comigo, mas não era por maldade. O lance é que estava esgotado - completamente -, e não conseguia falar nada que tivesse alguma relação com aquela merda toda.
Ela estava de pé e não muito próxima de mim. Olhei pra ela pela primeira vez, com um olhar meio vazio e a boca meio torta - costume de quando algo está errado e não sei o que dizer -, e dei tapinhas no sofá pra que ela sentasse do meu lado.
O clima estava pesado demais, mas metade de mim estava leve. Eu não consigo dar atenção a esse tipo de problema: uma coisa tão pequena que se torna cíclica e nada mais resolve. Ignoro tudo e me foco em qualquer outra coisa à minha volta. Um tanto infantil, mas é assim. Não adianta mais remendos aqui e ali, não adianta soluções pequenas e temporárias. Não adianta nada disso.
Começava Time. Parecia que a música deixava o clima ainda mais incerto com aqueles sons perdidos no nada enquanto a bateria se aquecia pra explodir a qualquer momento.
Abri a boca pela primeira vez.
- Sabe, quando eu era menor e ouvia esse início, eu pirava com os relógios. E depois eu ficava contando cada vez que a bateria ameaçava entrar com o verso. Eu ficava até meio incomodado, nunca sabia quando a música ia começar de verdade. Depois de alguns anos eu parei com isso e passei a aproveitar o momento. Parei de pensar quanto tempo ainda faltava. Sei lá, eu acho que percebi isso quando eu vi que me surpreendia quando vinha o toque final e entrava a voz com os outros instrumentos. Foi lindo, sabe? Sei lá, aqueles segundos de início passaram a ser horas. É como naqueles momentos em que você olha pra pessoa que você ama e fica com a porra da boca calada por sei lá quanto tempo, e você tem a certeza de que aquele é o lugar que você quer estar. Seja por alguns segundos, aquele lugar com aquela pessoa é o único lugar no mundo certo pra você. Nada mais importa. Sem palavras, sem mágoas, sem lembranças. É aproveitar o momento, sabe? Sentir que os segundos viraram horas. E depois aproveitar a explosão.
A música veio com tudo, e logo veio aquela guitarra maluca pra tomar conta da minha cabeça. Ela não se manifestou.
- Acho que a gente voltou ao incômodo de ficar esperando a hora da explosão. E aconteceu que ela nunca mais veio. É triste, mas é a verdade. - dei uma pausa e continuei. - Você me completa, sabe? Você sabe que sim. Mas a gente tá fazendo isso do jeito errado.
- E como é o certo? - ela perguntou.
- Não sei não, mas é algo bem diferente disso. - disse olhando pro chão. - Isso aqui tem que acabar.
"This is a song about innocence lost."
É o que era dito antes da próxima música, e se encaixava muito bem naquela situação.
- Parece que a gente cresceu demais. - concluiu ela.
Não disse mais nada, mas aquilo era verdade. Só que a gente demorou a entender isso.

Um comentário:

  1. Hum adorei este texto. Às vezes mudamos demasiado e não temos tempo de perceber isso.

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